XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM – “Repensou e fez o que o pai queria”

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I. A PALAVRA DE DEUS

Ez 18,25-28: “Quando o ímpio se arrepende da maldade que praticou conserva a própria vida.

Assim diz o Senhor:

– «Vós andais dizendo: ‘A conduta do Senhor não é correta`.

Ouvi, vós da casa de Israel: É a minha conduta que não é correta, ou antes é a vossa conduta que não é correta? Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre.

Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida. Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá; não morrerá».

Sal 24,4-8: “Recordai, Senhor meu Deus, vossa ternura e compaixão!

Mostrai-me, ó Senhor, vossos caminhos,
e fazei-me conhecer a vossa estrada!
Vossa verdade me oriente e me conduza,
porque sois o Deus da minha salvação;
em vós espero, ó Senhor, todos os dias!

Recordai, Senhor meu Deus, vossa ternura
e a vossa compaixão que são eternas!
Não recordeis os meus pecados quando jovem,
nem vos lembreis de minhas faltas e delitos!
De mim lembrai-vos, porque sois misericórdia
e sois bondade sem limites, ó Senhor!

O Senhor é piedade e retidão,
e reconduz ao bom caminho os pecadores.
Ele dirige os humildes na justiça,
e aos pobres ele ensina o seu caminho..

Flp 2,1-11: “Tende entre vós o mesmo sentimento que existe em Cristo Jesus.

Irmãos:

Se existe consolação na vida em Cristo, se existe alento no mútuo amor, se existe comunhão no Espírito, se existe ternura e compaixão, tornai então completa a minha alegria: aspirai à mesma coisa, unidos no mesmo amor; vivei em harmonia, procurando a unidade.

Nada façais por competição ou vanglória, mas, com humildade, cada um julgue que o outro é mais importante, e não cuide somente do que é seu, mas também do que é do outro.

Tende entre vós o mesmo sentimento que existe em Cristo Jesus.

Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: ‘Jesus Cristo é o Senhor’ – para a glória de Deus Pai.

Mt 21,28-32: “Quem dos dois fez o que queria o pai?”

Naquele tempo, Jesus disse aos sacerdotes e anciãos do povo:

–«Que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, ele disse: `Filho, vai trabalhar hoje na vinha!’ O filho respondeu: `Não quero’. Mas depois mudou de opinião e foi.

O pai dirigiu-se ao outro filho e disse a mesma coisa. Este respondeu: `Sim, senhor, eu vou’. Mas não foi.

Qual dos dois fez a vontade do pai?»

Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam:

–«O primeiro.»

Então Jesus lhes disse:

–«Em verdade vos digo, que os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus. Porque João veio até vós, num caminho de justiça, e vós não acreditastes nele. Ao contrário, os publicanos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, mesmo vendo isso, não vos arrependestes para crer nele.»

II. COMENTÁRIOS

Para melhor compreender o sentido da parábola convém ter em conta o contexto.

Estavam próximos os dias da páscoa judia e o Senhor Jesus já tinha ingressado triunfalmente em Jerusalém (Mt 21,1-11). Pouco antes, no caminho da Galileia à Judeia, alguns fariseus tinham saído para buscá-lo para pô-lo a prova, perguntando sobre a licitude de o homem repudiar sua mulher por qualquer causa (ver Mt 19,1-9). A má vontade dos fariseus e sumos sacerdotes para com Jesus ia chegando a seu clímax, e já falavam em tirá-lO de seu meio. O grande impedimento para pôr as mãos nele era o povo, que tinha o Senhor como um grande profeta. Tinham que calcular muito bem a jogada.

Em Jerusalém o Senhor vai ao Templo. Dada a proximidade das festas pascais, os peregrinos começavam a encher a cidade e o Templo. Junto com a grande afluência de peregrinos se multiplicaram também os vendedores de animais e cambistas, oferecendo aos peregrinos as moedas e os animais requeridos para as oferendas e sacrifícios. Sem dúvida com o consentimento dos sumos sacerdotes e fariseus, esses negociantes tinham-se instalado no próprio Templo. O Senhor, ao entrar no Templo, «derrubou as mesas dos cambistas e os postos dos vendedores de pombas. E lhes disse: “Está escrito: Minha Casa será chamada Casa de oração. Mas vós estais fazendo dela uma cova de bandidos!”» (Mt 21,12-13) Muitos cegos e coxos aproximaram-se dele e Jesus curou-os. Os homens, no Templo, prolongavam aqueles gritos proclamados vivamente durante sua entrada triunfal em Jerusalém: «Hosana ao Filho de Davi!» (Mt 21,15). Os sumos sacerdotes e os escribas estavam indignados e furiosos.

Naquele dia o Senhor saiu novamente da cidade e foi hospedar-se em Betânia, onde passou a noite. Na manhã seguinte, voltou para Jerusalém e ficou ensinando no Templo, como era próprio dos rabinos. Muita gente, vinda de todos os lugares de Israel, escutava seus ensinamentos. Então aproximaram-se dele os sumos sacerdotes e os anciões do povo, membros do sinédrio, para interrogá-lo publicamente: «Com que autoridade fazes isto? E quem te deu tal autoridade?» (Mt 21,23). O Senhor é insistentemente solicitado pelo tribunal máximo de Israel a dar razão da autoridade com que vem atuando ao realizar curas e prodígios, ao entrar triunfalmente em Jerusalém permitindo que chamem-no de “filho de Davi”, ao expulsar os vendedores, ao ensinar no Templo como um mestre.

Quanto ao último, o poder de ensinar oficialmente no Templo requeria a instrução, preparação e finalmente a imposição de mãos — sinal da transmissão de poder e de autoridade — por parte de algum rabino. Quem tinha dado a Jesus o poder e a autoridade, se nenhum rabino conhecido o tinha feito? Se não tinha este “selo de autenticidade”, se a autoridade não lhe tinha sido transmitida pela imposição de mãos, então seu ensinamento era ilícito e digno de suspeita.

A pergunta sobre a origem de sua autoridade não tinha como fim uma sã inquietação, eles não estavam abertos a reconhecer sua origem divina. Ao contrário, em seu contínuo afã por desacreditá-lo e com a intenção já decidida de matá-lo, esperavam encontrar em sua resposta alguma afirmação que lhes permitisse desacreditá-lo perante o povo. O Senhor, plenamente consciente das intenções de seus interrogadores, utiliza um método de discussão muito empregado pelos doutores da Lei e responde fazendo-lhes outra pergunta: «Também eu vou perguntar-lhes uma coisa; se responderem a ela, eu direi com que autoridade faço isto. O batismo de João, de onde era, do Céu ou dos homens?».

Com esta pergunta o Senhor astutamente colocava-os em uma posição muito complicada e delicada. Sabiam que se respondessem que vinha «do Céu», quer dizer, de Deus, o Senhor lhes jogaria na cara sua incredulidade. Com efeito, tanto os saduceus como os fariseus incrédulos tinham recebido por parte do Batista uma duríssima chamada de atenção. João não duvidou em qualificá-los de «raça de víboras» por sua negativa em acolher seu chamado à conversão (ver Mt 3,7-10). A resposta daqueles corações endurecidos seria negar abertamente a legitimidade da missão de João, rechaçando seu batismo e frustrando, desse modo «o plano de Deus sobre eles» (Lc 7,30). No entanto, «todo o povo que o escutou, inclusive os publicanos, reconheceu a justiça de Deus, batizando-se com o batismo de João» (Lc 7,29). O fato de não reconhecer que o batismo de João vinha de Deus significava negar sua missão como precursor do Messias (ver Jo 1,19-24), portanto, implicava negar também todo reconhecimento ao Senhor Jesus.

Se os fariseus e sumos sacerdotes respondiam que o batismo de João vinha “dos homens”, como evidentemente pensavam, temiam ser apedrejados pelo povo, que tinha o Batista por um profeta enviado por Deus (ver Lc 20,6). Assim decidiram encobrir o que verdadeiramente pensavam respondendo: «Não sabemos» (Mt 21,25-27). Uma vez que se negavam a dar a resposta verdadeira, também o Senhor se nega a respondê-los: «Tampouco eu lhes digo com que autoridade faço isto» (Mt 21,27). Era inútil dar-lhes a resposta verdadeira, pois assim como tinham rechaçado o Precursor e sua missão, rechaçariam também o Senhor, questionando e negando a origem divina de sua autoridade e poder.

Imediatamente, e no contexto descrito, o Senhor pronuncia uma parábola que ataca justamente a pretensão que os fariseus tinham de ser “os filhos obedientes de Deus” pois cumpriam meticulosamente a Lei, enquanto rechaçavam os publicanos e prostitutas, a quem consideravam absolutamente impuros, dignos da total rejeição de Deus, fonte de contaminação moral para quem tratava com eles.

Os que eram para eles pecadores desprezíveis, entretanto, diferente dos endurecidos fariseus, escribas e sumos sacerdotes, converteram-se de sua má conduta ao escutar o anúncio de João. A estes vai dirigida a parábola dos dois filhos, com a qual busca fazê-los ver quão equivocados estavam, a cegueira em que viviam, pois acreditando obedecer a Deus na realidade estavam frustrando «o plano de Deus sobre eles» (Lc 7,30).

Qual dos dois filhos convocados pelo pai da parábola faz finalmente o que o pai lhe pede? Evidentemente não é o que diz sim, mas não vai, mas o que em um primeiro momento se nega mas depois se arrepende, muda de opinião e vai trabalhar na vinha. Esses são os publicanos e prostitutas que escutando o chamado de João se arrependeram e se converteram de sua má conduta. Assim são também os maiores pecadores que acolhendo o chamado do Senhor Jesus abandonam sua má vida e fazem de seu Evangelho a nova norma de vida: estes «certamente viverão e não morrerão» (ver 1ª. leitura).

Finalmente, o Senhor Jesus diz aos seus ouvintes o significado preciso de sua parábola: «Asseguro-lhes [a vocês, que cumprem a Lei mas não vão trabalhar na vinha de Deus quando Ele os chama] que os publicanos e as prostitutas entrarão no Reino de Deus antes de vocês. Porque João veio a vocês ensinando-lhes o caminho da salvação, e vocês não acreditaram nele; no entanto, os publicanos e as prostitutas acreditaram. E vocês, apesar disto, não se arrependeram nem acreditaram neles». (Lc 7, 30)

III. LUZES PARA A VIDA CRISTÃ

Um filho rebelde, que se nega em um primeiro momento, embora depois repense e faça o que seu pai lhe pede. Outro filho que diz “sim”, “vou”, “farei o que me pede”, mas que finalmente não faz o que seu pai lhe pede. Diante desta parábola imediatamente surge a pergunta: como eu respondo a Deus? Com qual dos dois filhos eu me identifico? Com o primeiro? Com o segundo? Ou talvez tenha um pouco de ambos?

Quantas vezes como filhos rebeldes e contumazes dissemos a Deus “não quero fazer o que você me diz”, por exemplo, quando preferimos pecar, ou quando não queremos renunciar a isto ou aquilo para seguir o caminho que Ele nos assinala? Quantas negativas demos a Deus, embora muitas vezes disfarçadas com “boas razões e argumentos”, em vez de dizer cruamente: “Não me dá a vontade de fazer o que Você me pede”, “quero ser livre e sinto que Você me limita: quero fazer de minha vida o que me agrada, quero seguir meu próprio caminho, e não quero que Você interfira”. “Não vou fazer o que me pede porque quem melhor que eu para saber o que me convém?”, além disso, “no fundo, não confio em Ti: na realidade, Você é inimigo de minha felicidade, porque me impõe exigências impossíveis e me proíbe coisas que me fazem ‘sentir bem’”, “eu sei melhor que Você o que me fará feliz”.

Por outro lado, quantas vezes dissemos “sim” ao Senhor mas finalmente não fizemos o que nos pedia? Por que esta incoerência? No fundo, queríamos fazer o que Deus nos pedia, mas esperávamos que fosse “mais fácil”, que não implicasse tanto esforço, oposição por parte de amigos ou familiares, renúncias, sacrifícios, e às vezes opções radicais. Queremos um cristianismo “light”! E quando nos encontramos com tantos obstáculos (externos ou internos), dificuldades, tentações, descobrimo-nos tão fracos, frágeis, inconsistentes, incoerentes. Então nosso “sim” inicial se converteu lentamente em um “não”, deixamo-nos vencer por medos, preguiça, quedas, e voltamos atrás. Assim nos convertemos em “meio-queredores”, homens e mulheres de vontade dividida, que dizemos que queremos fazer o que Deus nos pede mas não pomos os meios suficientes para fazê-lo ou não perseveramos neles.

O Senhor nos dá sempre a possibilidade de repensar e de atuar como filhos obedientes. Nos anima e estimula neste empenho de dizer “sim” a Deus e de ser coerentes na vida cotidiana a exemplo de Maria, Mãe de Jesus e nossa: Ela é a mulher do “sim” pronto, firme, radical, decidido a Deus e a seus Planos, Ela é a Mulher coerente, que imediatamente põe em prática o que Deus lhe pede e sustenta seu “sim” com firmeza em meio às provas mais duras e difíceis. Com amor maternal Ela nos convida a fazer «o que Ele vos disser» (Jo 2,5).

Mas como saber o que é o que Deus me pede, de modo que eu possa fazer o que Ele me disser?

Primeiramente temos que conhecer e cumprir os Dez Mandamentos, tal como Cristo recorda ao jovem rico (ver Mt 19,16-19; ver Catecismo da Igreja Católica, 2052-2557; Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 434-533).

O segundo é fazer o que Cristo, o Filho de Deus vivo, ensina-nos com sua palavra e exemplo (ver Mt 7,21 e seguintes). Para isso é fundamental que cada dia conheçamos mais e melhor o Senhor Jesus, sua pessoa, seus ensinamentos, seu pensamento, para nos esforçarmos para viver como Ele viveu.

Mas além do que pede a todos, Deus tem um plano particular para cada um de nós. Este é um desígnio que brota de seu amor, de sua sabedoria e do profundo conhecimento que Deus tem de mim. Ele sabe que caminho devo seguir para ser feliz e de diversos modos vai assinalando esse caminho ao longo de minha vida. É responsabilidade de cada um descobrir esse Plano, pondo-se à escuta, procurando, indagando, rezando, perguntando a Deus: Qual é seu Plano específico para mim? Qual é minha vocação, qual a missão particular que Você quer que realize? O que Você quer que eu faça hoje, neste tempo, ou ao longo de toda a minha vida?

É necessário que você se coloque em oração diante do Senhor e pergunte a Ele sem medo. Reze cada dia, ponha-se à escuta, no silêncio do coração, indague os sinais, consulte pessoas de Deus, e lance-se confiantemente a fazer o que Ele te disser!

IV. PADRES DA IGREJA

São Jerônimo: «Depois quando veio o Salvador, o povo gentil, fazendo penitência, trabalhou na vinha de Deus, e corrigiu, com seu trabalho, a oposição que tinha apresentado com a palavra».

São Jerônimo: «Este segundo filho é o povo judeu que respondeu a Moisés: “Faremos tudo o que o Senhor nos mandar” (Ex 24,3)».

São Jerônimo: «Alguns acreditam que esta parábola não se refere aos gentios nem aos judeus, mas simplesmente aos pecadores e aos justos. Porque aqueles se negaram a servir a seu senhor, fazendo o mal contra ele e depois receberam de São João o batismo da penitência, enquanto que os fariseus, que levavam adiante a justiça de Deus e se gabavam de cumprir a Lei, menosprezando o batismo, não cumpriram a vontade divina».

V. CATECISMO DA IGREJA

Cristo diz “sim” e faz o que o Pai lhe pede

  1.  Foi em Cristo e pela sua vontade humana que a vontade do Pai se cumpriu perfeitamente e de uma vez para sempre. Ao entrar neste mundo, Jesus disse: «Eu venho, […] ó Deus, para fazer a tua vontade» (Hb 10, 7; Sal 40,7). Só Jesus pode dizer: «Faço sempre o que é do seu agrado» (Jo 8, 29). Na oração da sua agonia, Ele conforma-Se totalmente com esta vontade: «Não se faça a minha vontade, mas a tua» (Lc 22, 42). Eis por que Jesus «Se entregou pelos nossos pecados […] consoante a vontade de Deus» (Gl 1, 4). «Em virtude dessa mesma vontade é que nós fomos santificados, pela oferenda do corpo de Jesus Cristo » (Hb 10, 10).

Como Cristo também nós devemos cumprir a vontade do Pai

  1.  Jesus, «apesar de ser Filho, aprendeu, por aquilo que sofreu, o que é obedecer» (Heb 5, 8). Com quanto mais razão nós, criaturas e pecadores, que nEle nos tornamos filhos adotivos! Nós pedimos ao nosso Pai que una a nossa vontade à do seu Filho, para que se cumpra a vontade dEle, o seu plano de salvação para a vida do mundo. Somos radicalmente impotentes para tal, mas unidos a Jesus e com o poder do seu Espírito Santo, podemos entregar-Lhe a nossa vontade e decidir escolher o que o seu Filho sempre escolheu: fazer o que é do agrado do Pai:

«Aderindo a Cristo, podemos tornar-nos um só espírito com Ele e assim cumprir a sua vontade; desse modo, ela será feita na terra como no céu» (Orígenes, or., 26).

A importância da oração para cumprir o Plano de Deus

  1.  É pela oração que podemos discernir qual é a vontade de Deus (Rom 12, 2; Ef 5, 17)) e obter perseverança para cumpri-la. Jesus ensina-nos que se entra no Reino dos céus, não por palavras, mas «fazendo a vontade do meu Pai que está nos céus» (Mt 7, 21).
  2.  A oração de fé não consiste somente em dizer «Senhor, Senhor!», mas em preparar o coração para fazer a vontade do Pai (Mt 7,21). Jesus exorta os seus discípulos a levar para a oração esta solicitude em cooperar com o desígnio de Deus.

VI – TEXTOS DA ESPIRITUALIDADE SODÁLITE

«Um cristão coerente é aquele que sustenta com suas obras o que crê e afirma com palavras. Não há diferença entre uma coisa e outra. Descobre-se nele ou nela uma estreita unidade entre a fé que professa com seus lábios, a fé acolhida em sua mente e coração, e sua conduta na vida cotidiana: sua fé passa à ação, mostra-se e evidencia-se por seus atos[1]. Assim os princípios tomados do Evangelho orientam sua conduta e seu pensamento cristão, sua piedade e afetos, e se refletem na ação prática. Ele vive esta coerência não só quando as coisas se lhe apresentam “fáceis”, mas também quando é posto à prova.

Um cristão incoerente com sua fé e condição de batizado, ao contrário, é aquele cujas obras contradizem abertamente o que sustenta com suas palavras, o que diz crer e o que seu coração anseia no mais profundo de seu ser. É, por exemplo, aquele que diz: “creio, mas não sou praticante”, quer dizer, o que chamamos um “agnóstico funcional”, um batizado que —embora às vezes vá à Missa e reze algo de vez em quando— atua do mesmo modo como um homem que não crê em Deus, que não conhece a fé.

Incoerentes somos também nós, que nos encontramos com o Senhor Jesus e nos esforçamos por levar uma vida cristã séria, quando negamos com nossas obras os ensinamentos do Evangelho, quando não fazemos o que pregamos ou exigimos dos outros. Certamente todos, mais ou menos, temos algo de incoerentes…! (Caminho para Deus 108)

«A humildade não é outra coisa senão andar na verdade, caminhar segundo a realidade autêntica e objetiva. Por isso, não se trata de menosprezar ou negar o valor da pessoa humana como tampouco exaltá-lo de maneira ilusória, falseando ou distorcendo sua dignidade. Neste sentido, a soberba e a vaidade se opõem a esta virtude. Trata-se de reconhecer e aceitar a condição humana com tudo o que tem de fragilidade e grandeza, de miséria e dignidade, como mistério insondável cuja verdade nos transcende.

Esta virtude da humildade é indispensável no processo de amorização[2], pois não se entende como alcançar a plena conformação com o Filho de Maria prescindindo-se do fundamento da verdade. Só partindo de uma consciência clara de nossa própria realidade podemos acolher a graça e orientar retamente nossos dinamismos fundamentais.» (Caminho para Deus 49)

«Como cristãos estamos chamados à santidade. Este caminho é um apaixonante desafio que não está isento de dificuldades, mas nele a graça de Deus nos guia e nos sustenta. Entretanto, para que a graça seja eficaz em nossas vidas é necessária nossa cooperação. Não basta dizer “Senhor, Senhor” (Mt 7, 21). Por isso Santo Agostinho dizia: “Deus que te criou sem seu consentimento não te salvará sem seu consentimento”. Como consequência deste chamado exige-nos a autenticidade, dar testemunho permanente da Reconciliação trazida pelo Senhor Jesus. De nossa coerência depende a fé de muitos irmãos que esperam uma resposta às inquietações mais profundas de sua mesmidade[3]. Recordemos sempre que é todo um mundo o que temos que transformar desde seus alicerces, de selvagem a humano e de humano a divino. A grandeza de nossa missão torna indispensável que não traiamos a fé que proclamamos.

Quando Maria diz o primeiro faça-se (Lc 1, 38) compromete-se a ser coerente em sua missão de ser a Mãe do Reconciliador. Esta entrega lhe exigirá dor e sacrifício mas ela sabe que em aderir-se a seu Filho está a felicidade plena. Nada a desviará de seu objetivo, o amor imenso pelo Senhor Jesus e por nós seus filhos, a impulsionará a ser a mulher fiel, a Mãe da esperança, da perseverança na espera das promessas divinas, da fé.

Em Maria descobrimos que a coerência é um sinal cotidiano de amor. Os grandes momentos de sua vida, a resposta afirmativa ao anúncio do anjo, à profecia do velho Simeão, à enigmática resposta do Senhor Jesus no Templo, ao Sacrifício do Filho na Cruz, ao nascimento da Igreja não são senão o fruto amadurecido de sua perseverança cotidiana no esforço por descobrir o Plano de Deus e responder nas situações mais singelas. A fidelidade no pequeno assegura a fidelidade no grande.

A coerência é pois, escutar a Palavra de Deus e pô-la em prática como o fez Maria, nossa Mãe.» (Caminho para Deus 31)

« Por que falamos então de uma desconfiança em si mesmo? Porque assim como existe a confiança em si mesmo sem Deus, existe também a outra face da moeda: a desconfiança desmedida em si mesmo, quer dizer, a desconfiança doentia. Viver de uma maneira infantil, sem confiar que podemos caminhar com as próprias pernas, incapazes de opções próprias e de assumir responsabilidades duradouras não é o que Cristo nos pede quando nos diz que temos que ser “como crianças” para entrar no Reino dos Céus[4]. Temos as capacidades e a dignidade que Deus nos deu, e Ele mesmo nos convida a sermos responsáveis no exercício de nossa liberdade. Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista que muitas vezes nos equivocamos, que somos frágeis e pecadores, que necessitamos de Deus e da ajuda de nossas irmãs e irmãos. A sã desconfiança se fundamenta, em síntese, no realismo e na humildade.

Exercitar-nos tanto na confiança em Deus como em uma sã desconfiança de si mesmo nos ajuda a “acrescentar à virtude, o conhecimento”, como nos convida São Pedro[5]. Esse exercício nos oferece, além disso, duas chaves importantes para o discernimento do Plano de Deus em nossas vidas: o que Deus é capaz de fazer, e o que nós mesmos somos capazes de fazer. Confiemos em Deus, pois conhecemos quem Ele é. Esse exercício nos levará a uma sã desconfiança de nós mesmos, pois sabemos de que barro somos feitos[6]. E vice-versa: desconfiemos sadiamente de nós mesmos, porque isso nos ajudará a sermos mais humildes e simples, e a olhar para Deus com um coração mais crédulo, como sempre fez nossa Mãe Santa Maria. Desse modo, além disso, alcançaremos — da mão de Deus e como o fez Maria — grandezas insuspeitadas.» (Caminho para Deus 243)

[1] Ver Tg 2,14-21.

[2] Processo de amorização: Resume-se desta forma: “Por Cristo a Maria e por Maria mais plenamente ao Senhor Jesus” – Por amor a Jesus buscamos nos configurar com o Seu coração. Ali descobrimos a mor filial a Santa Maria, que nos remete ao coração da Mãe de Deus. Cada vez que nos aproximamos do coração de Maria buscando tê-la como Mãe, vemos que ele está repleto de amor por Jesus. Maria, então, nos remete a Jesus. E quando impulsionados por esta dinâmica de amor, nos aproximamos novamente do coração do Senhor Jesus, vamos nos aprofundando cada vez mais nos três grandes amores que ali se aninham e manifestam todo o horizonte de nossa existência: o amor ao Pai no Espírito de Amor, o amor filial a Santa Maria e o amor a seus irmãos, os homens.

[3]Mesmidade. Versão do neologismo espanhol “mismidad”. Termo que designa a realidade constitutiva mais profunda do ser humano. É o âmago da identidade ─ única e não repetível ─ de cada ser humano, realidade objetiva que não muda e subsiste para sempre. Constitui o centro do próprio ser e o núcleo de sua unidade pessoal subsistente, que permanece ao longo do devir histórico da pessoa, permitindo-lhe seguir sendo ela mesma e referir-se a sua identidade própria além das mudanças. Dela brotam os dinamismos fundamentais de permanecer e desdobrar-se, que orientam e impulsionam a própria existência à sua plenitude.

[4] Ver Mc 10, 14

[5] Ver 2 Pe 1, 7

[6] Ver Cor 2, 4-7

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